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Ficção-científica de Jordan Peele dialoga com a história do cinema e dos Estados Unidos.
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O cinema não surgiu de repente, como se fosse um trem acelerando contra o público. Entre o final do século 19 e o começo do século 20, foram vários os visionários que contribuíram com a arte de contar histórias por meio da imagem em movimento. Um deles foi o fotógrafo britânico Eadweard Muybridge, figura essencial na ficção-científica “Não! Não Olhe”, de Jordan Peele.

Na faculdade, aprendi que a centelha criativa do cinema foi uma aposta entre Leland Stanford, ex-governador da Califórnia e fundador da Universidade de Stanford, e o dono de um jornal de São Francisco. Um dizia que, durante o galope de um cavalo, havia um momento em que as quatro patas do animal ficavam suspensas no ar, o outro duvidava.

Para Marta Braun, especialista em Muybridge, a aposta é provavelmente um exagero. Stanford, na verdade, queria fazer com que os seus cavalos de corrida fossem ainda mais rápidos e pediu a ajuda do fotógrafo que já havia trabalhado para o governo americano registrando o povo indígena durante uma de suas últimas resistências, a Guerra Modoc.

Muybridge, então, colocou 12 câmeras separadas por cerca de 50 centímetros cada e criou um mecanismo – feito de madeira, molas de borracha e um disparador elétrico – para fazer fotos sequenciais do galope do cavalo, criando uma espécie de gif. Se você viu algum making of de “Matrix”, é o mesmo princípio do efeito conhecido como “bullet time”.

O experimento de Muybridge comprovava que havia, de fato, um momento em que o cavalo parecia flutuar. Para Shannon Perich, curadora de fotografia do Museu Nacional de História Americana, “a descoberta é que a câmera pode ver coisas que o olho humano não consegue e que, por meio da fotografia, podemos acessar um mundo além do que nós conhecemos”.

Peele, que também assina o roteiro de “Não! Não Olhe!”, partiu da capacidade intrínseca ao cinema de tornar o impossível em possível e criou uma história em que, assim como nas imagens seminais de Muybridge, cavalos podem voar. Trata-se de um filme metalinguístico, que dialoga não só com a história do cinema, mas com o ímpeto avassalador de capturar o improvável.

Para fazer esta declaração de amor ao cinema, Peele só poderia trabalhar com a ficção-científica. Georges Méliès foi um dos primeiros a enxergar o potencial narrativo da câmera – em 1902, muito antes de Neil Armstrong, o ilusionista francês levou a humanidade à lua. Em sua concepção, o cinema é um universo fantástico, povoado por alienígenas e cavalos voadores.

Ao contrário de “E.T. – O Extraterrestre”, porém, “Não! Não Olhe!” não é apenas uma fantasia escapista. “Corra!” e “Nós”, também escritos e dirigidos por Peele, são filmes de gênero que discutem racismo e desigualdade social. O jovem diretor de 43 anos se mantém numa intersecção delicada entre entretenimento e crítica, comércio e arte.

Em “Não! Não olhe!”, Daniel Kaluuya interpreta OJ Haywood, proprietário de um rancho de cavalos treinados que são utilizados em gravações de filmes e comerciais. OJ descende de Alistair E. Haywood, jóquei negro que cavalgou o cavalo fotografado por Muybridge e que acabou se tornando o primeiro ator, treinador e dublê da história do cinema.

Na realidade, não há registro algum de quem foi o jóquei. A família Haywood foi criada por Peele para representar os contribuidores anônimos que foram apagados da história do cinema, tão povoada por homens brancos como Eadweard Muybridge e Leland Stanford. Resgatar as mulheres e as pessoas racializadas que foram esquecidas pelo caminho é um esforço relativamente recente.

Em 2010, quando me formei na faculdade, nunca tinha ouvido falar de Alice Guy-Blaché, uma pioneira francesa que dirigiu mais de mil filmes ao longo de duas décadas. Fomos apresentados a D.W. Griffith, com o aviso de que sua obra-prima era imperdoavelmente racista, mas muito importante à linguagem cinematográfica. Nunca estudamos o cinema negro ou o cinema queer.

Da forma como nos ensinaram, o cinema era uma conquista principalmente europeia e americana, com um aceno ocasional a mestres como Akira Kurosawa, porque tinham o aval de Cannes ou de Veneza. Era como se o cinema não existisse no resto do mundo – ou, ao menos, não importasse tanto assim.

Não é à toa que Peele decidiu tratar da história do cinema pela perspectiva de um homem negro, vivido por Kaluuya, e de sua irmã negra e lésbica – Keke Palmer no papel de Emerald Haywood. Depois que OJ nota fenômenos estranhos em seu rancho, ele é convencido pela irmã a comprar câmeras de vigilância e apontá-las aos céus.

Angel Torres, funcionário de uma loja de eletrônicos que é interpretado pelo latino Brandon Perea, fica intrigado e começa a ajudar os dois. No terreno vizinho ao rancho, Ricky “Jupe” Park (o ator coreano Steven Yeun) administra um pequeno parque com temática de faroeste. Os fenômenos da região inspiram um novo e arriscado espetáculo.

 

***SPOILERS A PARTIR DAQUI***

 

Jupe era um ator mirim na sitcom “Gordy’s Home” (“a casa de Gordy”), um típico enlatado americano dos anos 1990 com o diferencial de contar com um chimpanzé no elenco. Durante a gravação de um episódio, o chimpanzé que interpretava Gordy se espantou com o estouro de um balão e começou a atacar os seus colegas de cena, deixando ao menos dois gravemente feridos.

Durante o ataque, Jupe se escondeu sob uma mesa do cenário. Quando Gordy, por fim, se acalmou e percebeu que o menino estava ali, seu comportamento mudou. Foi como se o chimpanzé reconhecesse um velho amigo – mas antes que os dois pudessem se cumprimentar com um soquinho costumeiro, um tiro estraçalhou a cabeça do bicho.

Na internet, é fácil encontrar vídeos de animais atacando apresentadores de televisão ou jornalistas. Animais são imprevisíveis, mas os seres humanos insistem em domá-los. Já adulto, Jupe não parece muito traumatizado pelo evento. Em seu escritório, há um pequeno museu com itens originais de “Gordy’s Home”, expostos como se fossem relíquias bizarras.

Jupe assimilou todo o ocorrido como parte do showbusiness. Ele descreve, inclusive, uma paródia grotesca do incidente feita no “Saturday Night Live” e elogia a atuação de Chris Kattan como um Gordy alucinado. Por acreditar, talvez, que ele possui algum tipo de conexão especial com os animais é que Jupe tenta adestrar uma fera alienígena em seu novo espetáculo.

Os fenômenos no rancho de OJ não foram provocados por naves espaciais, mas por um enorme animal que se esconde nas nuvens e que se alimenta do que encontra pela frente (embora tenha um estômago sensível). O bicho interplanetário, batizado de Jean Jacket, é territorial e age como se fosse o dono do pedaço – Gordy, afinal, também estava em sua própria “casa”.

Vista do chão, a criatura lembra a parte inferior de um chapéu branco de caubói, muito semelhante aos que eram usados pelo pai de OJ e também por Jupe – ambos racializados e mortos. Nos faroestes clássicos, o chapéu branco designava o mocinho da trama, o xerife. Em “Não! Não Olhe!”, Jean Jacket é um animal perverso que ataca quem olhar diretamente para ele.

O monstro de Peele é a supremacia branca, que apaga a contribuição da família Haywood à história do cinema e suga as vidas de quem toma consciência de sua presença. O racismo é um bicho ensandecido que, apesar de ser um forasteiro, se sente em casa onde estiver, como os colonizadores brancos que massacraram os povos originários para formar os Estados Unidos.

Era comum, nos tempos da escravidão, que os escravos evitassem olhar nos olhos dos senhores, para demonstrar subserviência e evitar represálias. Até hoje, nos Estados Unidos, os negros evitam contato visual com policiais. A única forma de se proteger é registrar os abusos cometidos por aqueles que detém o poder, como no vídeo do assassinato de George Floyd.

É por isso que é tão importante filmar Jean Jacket, não apenas para aparecer no programa da Oprah e ganhar muito dinheiro, mas para capturá-lo, ainda que simbolicamente. Para tal, há um momento em que OJ olha para o alienígena com o intuito de atrair a sua atenção e permitir a fuga da irmã – um homem negro defendendo uma mulher negra e lésbica.

E é uma mulher negra e lésbica quem, por fim, registra o monstro – também com fotos sequenciais, como fez Muybridge em 1878. E também é ela quem destrói Jean Jacket, alimentando a criatura com um balão gigantesco em formato de caubói, um falso ícone de bravura e heroísmo, fazendo o forasteiro provar um pouco da própria dose.

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