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Disputando três estatuetas do Oscar, inclusive a de melhor ator, produção da A24 trata de uma trupe de teatro composta por detentos.
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Raiva é a emoção mais fácil de interpretar. Perigosamente fácil. É assim que o corpo de teatro composto por presidiários de Sing Sing pensa. Localizada a 48km de Nova York, a penitenciária de segurança máxima foi construída no século 19 e pode abrigar mais de 1700 detentos. O filme “Sing Sing”, porém, trata também de outros artefatos de eras passadas.

Disputando três estatuetas do Oscar, inclusive a de melhor ator para Colman Domingo, a produção da A24 é baseada num programa real, chamado Rehabilitation Through the Arts (em tradução livre, “reabilitação por meio das artes”). Fundada em 1996, a iniciativa foi adotada em diversas prisões americanas e envolve teatro, música, artes visuais e literatura.

Em “Sing Sing”, Domingo interpreta Divine G, preso por um crime que não cometeu. Depois de adaptar Shakespeare, sua trupe procura por novos talentos que possam fazer parte do próximo espetáculo. O truculento Divine Eye – vivido pelo ator Clarence Maclin, que fez parte do programa na vida real – surpreende e acaba ganhando o papel que antes seria de Divine G.

É comum, em tramas envolvendo detentos, que rivalidades assim resultem em violência física. Não é o caso de “Sing Sing”. Vemos o personagem de Domingo processando a sua frustração internamente, mas também acolhendo o novo colega. O programa é, antes de tudo, um grupo de apoio para homens que precisam sobreviver naquelas circunstâncias.

Divine Eye, contudo, tem um bom caminho a percorrer. A princípio, ele acha os exercícios de improviso um tanto patéticos e não consegue se entregar às propostas do grupo – mesmo demonstrando um interesse genuíno pelo tablado, nos raros momentos em que não precisa projetar a imagem de um criminoso durão.

Em modo automático, ele reage a qualquer ameaça, seja real ou imaginada, com a agressividade e o linguajar típicos das produções americanas do gênero. Divine G, por sua vez, esclarece com calma: “aqui não usamos ‘n*gga’, usamos ‘meu caro’”. E assim se inicia um lento processo de desenvolvimento emocional.

A ideia é simples, mas incontestável. Os frutos estão aí, no elenco de “Sing Sing”. Para fazer arte, é necessário se mostrar vulnerável. Por meio da vulnerabilidade, podemos compreender não só os nossos sentimentos, mas as pessoas ao nosso redor. A arte é uma máquina de empatia que nos ajuda a estabelecer conexões que se provarão cruciais diante das várias adversidades da vida.

Felizmente, “Sing Sing” não se concentra apenas no desabrochar artístico de Divine Eye. Em determinado momento, há uma inversão de papéis que só acrescenta à complexidade dos personagens e à urgência da trama. Sei que chamar um filme de “importante” é estrangular qualquer interesse que possa haver nele, mas é mesmo importante – pior ainda, é até necessário.

Há um consenso geral de que, quando mulheres passam por dificuldades relacionadas à saúde mental, o problema é todo delas – e que, quando os homens enfrentam as mesmas crises, é uma preocupação de toda a sociedade. Por anos, discutimos a questão da “solidão masculina”, como se as mulheres já vivessem na plenitude.

É que, de fato, quando homens não contam com uma rede de apoio (e não me refiro a mães, namoradas ou esposas), eles se tornam violentos – e os alvos podem ser aleatórios, como nos vários tiroteios dos Estados Unidos. Homens não podem internalizar seus receios, suas dúvidas e fraquezas. Para se vingarem da sociedade (a mesma sociedade que se desdobra para garantir os seus privilégios), eles acumulam ódio e ressentimento até a bomba explodir.

A vingança é por tudo que é exigido de um “homem de verdade” – ou por tudo aquilo que eles acreditam que é exigido de um “homem de verdade”. Charlatões da internet, que vivem de vender cursos e mentorias ao público masculino mais insatisfeito, definem marcadores de sucesso que os seus pupilos jamais irão alcançar sem serem herdeiros e/ou criminosos – tudo para mantê-los raivosos e cativos.

Obras recentes, como o japonês “Monster” (2023) e o belga “Close” (2022), tratam de meninos que, na passagem da infância para adolescência, são forçados a rejeitar as suas amizades mais próximas, por receio de que pareçam afeminados. Muito mais velha e decadente do que o presídio de Sing Sing, é a ideologia que estabelece que a afeição é algo intrinsicamente feminino – e, portanto, desprezível.

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