É impossível assistir “Gentleman Jack” e não pensar no famoso trecho do diário de Sylvia Plath (1932-1963):
“Mas as mulheres também desejam. Por que devem ser relegadas à posição de zeladoras de emoções, babás de crianças, alimentando sempre a alma, o corpo e o orgulho do homem? Ter nascido mulher é a minha tragédia horrorosa(…) Sim, meu desejo ardente de me misturar aos operários, marinheiros e soldados, a frequentadores de bares – fazer parte de uma cena anônima, ouvindo e registrando – tudo isso é prejudicado pelo fato de eu ser uma moça, uma fêmea que corre sempre o risco de ser atacada e maltratada. Meu interesse imenso pelos homens e suas vidas é frequentemente confundido como desejo de seduzi-los, ou como um convite à intimidade. Mas, meu Deus, quero conversar com todo mundo, o mais profundamente que puder. Quero poder dormir em campo aberto, viajar para o oeste, andar livremente pela noite…”
O sentimento que acometeu Plath em meados do século XX já se fazia presente na Inglaterra de 1832. Baseada nos diários de Anne Lister (1791-1840), a série produzida pela BBC One e exibida pela HBO, trata de uma lésbica de 41 anos, conhecida como “a primeira lésbica moderna” (no dialeto local, “jack” era um termo depreciativo, semelhante a “sapatona”). Interpretada por Suranne Jones, Lister é uma mulher de negócios, muito inteligente e sagaz, que seduziu dezenas de mulheres ao longo da vida.
Em luto pelos relacionamentos perdidos (suas companheiras acabam sempre cedendo às pressões da sociedade e se casando com homens abastados), Anne veste preto dos pés à cabeça. De cartola e trejeitos masculinos, ela viaja ao redor do mundo tentando escapar da maledicência de Halifax, em West Yorkshire – isto é, até encontrar Ann Walker (Sophie Rundle), uma jovem sensível e podre de rica. A medida que as duas se conhecem, o interesse financeiro de Lister se transforma em algo mais.
Com a primeira temporada concluída e a segunda já confirmada, a criadora Sally Wainwright (também natural de Halifax) não deve ficar sem matéria-prima tão cedo, dado que os diários de Anne Lister contém 26 volumes, com 6 deles escritos em código. Na série, Suranne Jones quebra a quarta parede e conversa diretamente com o espectador. Ainda que o recurso seja bem menos utilizado do que em “Fleabag”, outro destaque de 2019, é uma forma inteligente de adaptar um diário e expor os sentimentos da protagonista, principalmente por se tratar de um enredo do século XIX.
Filmada em Shibden Hall, a casa da própria Anne Lister, “Gentleman Jack” tem uma fotografia primorosa, que lembra, às vezes, a luz de Johannes Vermeer, expoente da pintura barroca holandesa. O tema musical da série, da dupla folk O’Hooley & Tidow, combina com o espírito intrépido da personagem. “Ela é o tipo de pessoa que transformaria um insulto em elogio”, diz Wainwright. “Quando um homem me diz que estou errada, eu digo, sim, estou errada(…) Quando algo acontece, eu me preocupo por semanas. Mas Anne tinha um coração de leão.”
Apesar do contexto da época, de uma Inglaterra que punia a sodomia com a morte (no Reino Unido, a homossexualidade só foi descriminalizada em 1967), a primeira temporada de “Gentleman Jack” não tem um final trágico. É, na verdade, uma boa e velha “trama de casamento”, à moda dos livros de Jane Austen, mas com uma heroína lésbica – o que configura um avanço na representatividade LGBTQ, oferecer ao público em geral o que apenas os heterossexuais tiveram à disposição: uma novela romântica.