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As donas de casa desesperadas de Todd Haynes.
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Muito antes de Greta Gerwig, Todd Haynes já tinha feito a sua polêmica versão de “Barbie”. Com um elenco só de bonecas, o diretor encenou a história real da cantora Karen Carpenter e sua trágica morte causada pela anorexia nervosa. Retirado de circulação por motivos legais, o curta “Superstar” pode ser encontrado (em péssima qualidade) no YouTube.

Embora a família Carpenter não tenha entendido assim, a ideia por trás do curta era discutir a comodificação do corpo feminino. Por décadas, a bonequinha de proporções irreais foi um símbolo de opressão que inspirou incontáveis distúrbios alimentares. E por toda a sua filmografia, Haynes sempre esteve atento ao sofrimento feminino.

Apesar das boas intenções, um drama encenado por bonecas também carrega uma certa qualidade “camp” – palavrinha que o diretor odeia. “Camp’ nunca passou pela minha cabeça como uma espécie de metodologia, de referência ou postura que eu adotaria,” disse Haynes sobre seu filme mais recente, “Segredos de um Escândalo”.

“Camp” é um conceito muito debatido e difícil de explicar. Há quem diga que o “camp” é uma tentativa fracassada de seriedade – assim, um filme como “Showgirls”, do diretor Paul Verhoveen, pode ser encarado como “camp”. Contudo, há o “camp” intencional, algo que almeja o ridículo desde o começo, como as encenações exageradas de “RuPaul’s Drag Race”.

O “camp”, então, é o exagero? Algo que extrapola os limites do que seria considerado aceitável ou “normal”? Ou algo que pretende ser dramático, mas acaba provocando risos? Algo que se diz uma coisa e é, na realidade, outra? E por que tanta gente descreveu “Segredos de um Escândalo” como “camp”, para a ira de Haynes?

“Segredos de um Escândalo” trata de uma atriz chamada Elisabeth que vai passar um tempo com Gracie, personagem que ela irá interpretar em uma cinebiografia – tudo para estudar seus maneirismos, sua forma de falar etc.. Gracie se tornou figura pública quando, aos 36 anos de idade, foi presa por ter relações sexuais com um menino de 13.

Inspirado em um caso verídico, Gracie cumpriu pena grávida do menino e, assim que saiu da prisão, os dois se casaram e constituíram família. Com uma diferença de 23 anos entre eles, é Gracie quem adota uma postura infantilizada, como se quisesse convencer a si própria de sua inocência. Ela quer acreditar que foi tudo uma incompreendida história de amor.

Aonde está o “camp” nisso? Justamente nessa duplicidade de Gracie, que tenta projetar uma certa imagem, mas é o exato oposto dela. Gracie é uma predadora, controladora, manipuladora, munida com os piores comentários passivo-agressivos. No entanto, ela quer que Elizabeth a veja como uma heroína romântica – afinal, o único crime que ela cometeu foi amar demais!

Em uma cena já bastante comentada, Gracie está organizando um churrasco com a família no feriado de 4 de julho. Ela abre a geladeira, a câmera dá um zoom dramático em seu rosto e Gracie diz, aflita: “Acho que não temos salsichas suficientes”. O plano seguinte mostra uma grelha já com umas 20 salsichas quase prontas. Como não rir de sua contradição delirante?

Seja com “Superstar” ou “Segredos de um Escândalo”, Haynes sempre esteve nesse limiar entre o trágico e o “camp”. Muito disto tem a ver com o seu interesse pelos melodramas – “Longe do Paraíso” é, ao mesmo tempo, uma homenagem a Douglas Sirk e uma subversão de um gênero que, décadas atrás, não podia tocar em certas questões explicitamente.

Em “A Salvo”, Julianne Moore é também uma dona de casa que, sem qualquer explicação, começa a adoecer. Os médicos, porém, alegam que a sua saúde é perfeita e ela passa a buscar tratamentos alternativos e sem fundamentos. Em momento algum, ela chega à conclusão óbvia de que o seu problema é, na realidade, ser uma dona de casa suburbana.

Afinal, quando não podemos tratar abertamente daquilo que nos aflige, nos resta apenas indagar se temos salsichas suficientes.

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