Entre os indicados ao Oscar de melhor filme deste ano, há algumas polêmicas. Há “Emilia Pérez”, é claro, que é praticamente o “Green Book” de 2025, mas muitos questionaram também as cenas finais de “Conclave” e de “Anora”. Aproveitando todo o burburinho da Academia, ambos chegaram aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira.
Comentei sobre “Anora” quando falei de “Babygirl”. Comparei uma executiva poderosa, que se dá ao luxo de viver as suas fantasias sexuais como submissa, com uma dançarina de striptease, que vive em função dos desejos alheios. Porque é assim que esta última busca por uma posição social que lhe garanta dignidade e segurança – a submissão é a sua realidade, a autonomia é que é a fantasia.
O diretor Sean Baker, que está acostumado a retratar grupos marginalizados, não quer que o espectador veja Anora (ou Ani, como ela prefere ser chamada) como uma interesseira à procura de um marido rico, mas como uma jovem mulher que agarra as chances que ela tem de se tornar “alguém”. É uma personagem embrutecida, que precisa ser durona para reafirmar os seus direitos a todo instante, com unhas e dentes.
Não vou dar spoilers, mas é só no final que Ani demonstra alguma vulnerabilidade – porque é o único momento em que ela pode. E como os personagens envolvidos não explicam o que sentem, mas apenas reagem um ao outro, creio que muitos se confundiram em interpretações diversas. No meu entendimento, não há nada de ofensivo. Na verdade, foi o que me conquistou.
Vi como um momento de comunhão entre duas pessoas da mesma classe social, que passaram quase o tempo inteiro sendo subjugadas e maltratadas por gente mais poderosa, e que só ali puderam baixar a guarda. Tudo provocado por um gesto inesperado de camaradagem – uma ordem que é desobedecida, só para facilitar a vida de um semelhante.
Sobre esta tensão entre realidade e fantasia na obra de Baker, recomendo este vídeo.
No caso de “Conclave”, vi algumas opiniões (geralmente, de homens) de que o final parece muito aleatório, que não há conexão com o resto filme. E não sei como é possível pensar assim. Aliás, até sei, mas vocês me entenderam.
No suspense dirigido pelo alemão Edward Berger, o Papa acaba de morrer. Cabe ao Cardinal Lawrence, interpretado por Ralph Fiennes, a tarefa de organizar os encontros que definirão um sucessor. A sinopse não transparece, mas “Conclave” é muito divertido – é como uma trama de detetive, em que Lawrence precisa descobrir os podres de cada candidato, antes que a decisão final seja tomada.
“Conclave” trata da vaidade e da ambição masculina, em circunstâncias onde tais aspirações são literalmente pecaminosas. Lawrence, que deveria ser imparcial, é também colocado em xeque. Ele estaria puxando a capivara dos cardinais por querer o poder para si próprio? Nem ele sabe ao certo – é a dúvida, porém, e não a soberba da certeza, que o mantém (mais ou menos) íntegro.
Ao fundo dessa disputa entre homens mesquinhos e mentirosos pela maior glória da Igreja Católica, estão as mulheres. As freiras que devem ser invisíveis enquanto cozinham e tratam de recolher as dezenas de bitucas de cigarro largadas pelos cardinais (um deles, pelo menos, é adepto do vape e não contribui com a sujeira do chão).
A maravilhosa Isabella Rossellinni, que também esteve recentemente em “La Chimera”, interpreta a Irmã Agnes, uma espécie de madre superiora que não deve interferir nos assuntos dos cardinais, mas que acaba desempenhando uma função importante – mesmo com pouquíssimo tempo de cena, sua presença é forte e crucial.
É, no mínimo, curioso que tantos críticos homens venham tratando o desfecho com tamanha estranheza. São como os cardinais que circulam pelo Vaticano como se as freiras fossem, de fato, invisíveis. Mas elas estão lá. Elas estão lá o tempo todo. E a sobrevivência da Igreja, como de toda grande organização, passa por um apreço maior à contribuição feminina.
No final das contas, tanto “Anora” como “Conclave”, obras que poderiam ser vistas como opostas (uma trata de uma stripper metida com a máfia russa, a outra tem a ver com os trâmites internos do Vaticano), causaram polêmica pela mesma questão: Qual é o papel da mulher na sociedade? E por que é sempre tão difícil? Seja você uma garota de programa ou uma santa?