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Em nova obra-prima do cinema americano, Scorsese subverte o faroeste e o true crime.
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Em 2016, o britânico Alan Moore, autor dos quadrinhos “Watchmen”, disse em entrevista que os super-heróis são como sonhos de uma raça superior: “Na verdade, acho que podemos considerar ‘O Nascimento de Uma Nação’, de D.W. Griffith, como o primeiro filme americano de super-herói, o ponto de origem de todas essas capas e máscaras.”

Por décadas, Griffith foi considerado como o pai da linguagem audiovisual, ensinado nas universidades (inclusive a minha) com a breve ressalva de que a obra-prima de 1915 inspirou o retorno da Ku Klux Klan, grupo fundado por oficiais confederados que aterrorizava a população negra dos Estados Unidos e que havia sido dissolvido entre 1869 e 1871.

No século XIX, a doutrina do destino manifesto atribuía aos colonizadores brancos a missão de expandir a civilização rumo ao oeste americano, tomando as terras que eram suas por um suposto direito divino e massacrando os povos originários. Assim, a supremacia branca nunca foi uma anomalia na história dos Estados Unidos, mas um dos principais pilares de sua fundação. 

Dos primórdios do cinema até a subversão do gênero nos anos de 1960, o faroeste propagava ao mundo o mito do cowboy que lutava heroicamente contra os “selvagens” – isto é, todos aqueles que não eram brancos. E quem melhor para criticar os heróis americanos do que o diretor Martin Scorsese, algoz dos filmes da Marvel?

Já nos cinemas, “Assassinos da Lua das Flores” começa com um intertítulo, uma cartela de texto muito comum no cinema mudo para comunicar informações ou diálogos. Por coincidência, ao buscar por “intertítulo” na Wikipédia, o exemplo utilizado é de “O Nascimento de Uma Nação”, um cartaz que diz “antes inimigos, o norte e o sul se unem de novo na defesa comum de seu direito de nascença ariano”.

Em “Lua das Flores”, os últimos membros da tribo Osage, já quase toda dizimada, encontram petróleo em suas terras e se tornam o povo mais rico per capita do mundo. Para quem nunca tinha ouvido falar na história, é uma sequência surreal em que indígenas abastados contratam brancos como motoristas e empregadas, uma sensação semelhante à descoberta de Wakanda em “Pantera Negra” (desculpe, Martin).

Retornando da Primeira Guerra Mundial, o simplório Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) é orientado pelo tio, o poderoso King Hale (Robert De Niro), a se aproximar de Mollie (Lily Gladstone), herdeira de parte da fortuna Osage. Esta aproximação se dá tanto por afeição como por conveniência – com a passagem do tempo, porém, uma motivação fica mais evidente do que a outra.

De Niro e DiCaprio são os atores mais emblemáticos da longa carreira de Scorsese, mas nunca interpretaram heróis irrepreensíveis em sua filmografia – ainda que os fãs mais equivocados idolatrem Travis Bickle, de “Taxi Driver”, no mesmo altar de Michael Corleone, de “O Poderoso Chefão”, e de Tyler Durden, de “Clube da Luta”, completando a santíssima trindade incel.

De certa forma, “Lua das Flores” é também um filme de gângsters, como “Os Bons Companheiros” ou “Cassino”, mas a violência e a ganância não estão restritas a um grupo de mafiosos em ternos extravagantes. Trata-se de uma hostilidade sistêmica, muito mais insidiosa e, para não deixar dúvidas, despida de qualquer glamour.

Sem nunca desconfiar de sua maldade ou questionar os próprios impulsos, é com um sorriso amigável que Hale convence os outros a praticarem as maiores atrocidades como se fossem pequenos favores. Não há uma grande conspiração arquitetada por vilões de desenho animado, mas uma defesa quase instintiva do privilégio branco, o que é ainda mais assustador.

Entre 1918 e 1931, dezenas de índios Osage foram mortos. Alguns contraíram doenças misteriosas e, sem que a polícia local movesse um dedo, outros foram assassinados a sangue-frio. Só na família de Mollie, vários morreram sob circunstâncias suspeitas e os bens que antes pertenciam à tribo passaram a ser controlados por homens brancos.

“Assassinos da Lua das Flores” descarta a estrutura policialesca do livro homônimo de David Grann, que se concentra mais no mistério em torno dos crimes e nos pormenores da investigação do FBI, para contemplar o ponto de vista dos Osage. Com uma tacada só, o filme subverte as convenções tanto do faroeste como do chamado “true crime”, dando voz àqueles que foram apagados da memória do país.

Mesmo assim, Scorsese não se parabeniza pelo feito, como se esperaria de algum diretor mais vaidoso e sedento por estatuetas douradas. Sem qualquer fanfarra, ele encerra “Lua das Flores” com lucidez, ciente de como o cinema transforma o sofrimento alheio em espetáculo e reconhecendo as limitações de um homem branco que conta uma história que não é a sua.

São raros os artistas que envelhecem como Scorsese, expoente do movimento conhecido como Nova Hollywood. Aos 80 anos, o cineasta ainda tem o vigor de rever ideologias e maneirismos para oferecer algo original e profundo – uma obra que se encaixa perfeitamente na evolução de sua extensa filmografia e, no entanto, parece tão singular.

Na história do cinema, o faroeste prevaleceu por cinco décadas. Em “Rastros de Ódio”, dirigido por John Ford em 1956 (e referenciado por Scorsese tanto em “Quem Bate à Minha Porta?”, de 1967, como em “O Irlandês”, de 2019), a porta de uma nova América se fecha para o cowboy vivido por John Wayne. 

Com “Lua das Flores”, Scorsese passa a chave e coloca o trinco.

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