Em minha crítica de “M3GAN” para a Folha, elogiei o senso de humor do filme em comparação com o tom carrancudo das distopias de “Black Mirror”. Com raras exceções, como o episódio “San Junipero”, a proposta da série britânica criada por Charlie Brooker sempre foi imaginar um futuro em que as novas tecnologias só servem para nos atazanar.
Em pleno 2023, nada disso é especulação. As redes sociais possibilitaram a ascensão da extrema direita ao poder, os defensores da inteligência artificial tentam tornar a criatividade humana obsoleta e já estamos “ressuscitando” atores mortos para colocá-los em filmes novos. Diariamente, os avanços tecnológicos nos apresentam um novo dilema moral.
Após um hiato de quatro anos muito turbulentos no planeta, “Black Mirror” retorna com o desafio de criar um pesadelo ainda mais terrível do que a nossa realidade atual – ou, então, fazer algo completamente diferente. Com apenas cinco episódios em sua sexta temporada, Brooker se afasta do futuro. Algumas de suas histórias nem lidam mais com tecnologia.
Em seu primeiro episódio (o melhor de todos), Brooker satiriza a própria Netflix de forma bastante divertida. Sem dar spoilers, a trama gira em torno de uma plataforma de streaming chamada Streamberry – com a mesma fonte e a mesma vinheta da Netflix. Nesse universo, a plataforma produz um conteúdo bastante controverso, feito para satisfazer o algoritmo. Ou seja, estamos no presente.
Apesar do tom absurdista do episódio, nele é discutido toda a indústria do entretenimento que, neste exato momento, busca reivindicar seus direitos diante do modelo de negócios criado pelas plataformas de streaming. É um grande dedo do meio para a Netflix sendo veiculado pela própria – o que é, no mínimo, interessante. Annie Murphy e Salma Hayek estão ótimas.
No segundo episódio, que também se passa no presente, “Black Mirror” analisa o nosso hábito de consumir a tragédia alheia como uma forma de entretenimento – tema que chega a ser tocado no episódio anterior, mas que é muito mais evidente neste. Estamos falando, mais precisamente, de “true crime”. Aqui, são fitas de VHS que desempenham um papel crucial e não há nada de futurístico.
Com Josh Hartnett e Aaron Paul, o terceiro episódio é o que mais se assemelha com o estilo tradicional da série – e, justamente por isso, o mais chato de todos. A duração de 1h20 também não ajuda, pois é fácil de imaginar a conclusão meia hora antes dela chegar. Não há nada de especial sendo discutido, parece que já vimos tudo isso antes.
Tanto o terceiro como o quarto episódio partem para elementos completamente diferentes do resto da série. Há, no terceiro, o pano de fundo da indústria da fama dos anos 2000 e, no quarto, a xenofobia britânica do final da década de 1970, mas Brooker sai do reino da ficção científica para colocar os dedinhos do pé no terror.
Ficção científica e terror não são gêneros muito distantes um do outro, pois quase toda possibilidade de futuro parece assustadora, mas a sexta temporada de “Black Mirror” parece querer se livrar de suas amarras e propor algo novo e diferente – não necessariamente melhor, mas diferente.