“Vou sentir a sua falta mais do que os limites da minha linguagem podem descrever e que o meu coração pode suportar.” Foi o que disse Kyle Maclachlan, nosso querido Dale Cooper de “Twin Peaks”, ao saber da morte de David Lynch. Se nem o ator cuja carreira foi moldada por ele é capaz de abordar o vazio que o cineasta nos deixa, como eu poderia?
Imaginei que as minhas palavras de nada acrescentariam à pororoca de obituários de um dos artistas mais importantes do século 20. Seu impacto nas mídias mais diversas, passando das artes plásticas ao cinema, da televisão à música, da moda ao videogame, é praticamente incomparável.
“Lynch” se tornou sinônimo de surreal. A adjetivação de seu nome é usada para descrever – muitas vezes, de forma incorreta – qualquer obra onírica, hermética ou minimamente bizarra. Vi “A Substância” sendo descrito como “Lynchiano”, sendo que a maior e mais evidente influência da diretora é Stanley Kubrick. Mas entendo o motivo.
Foi convencionado que o estranho é próprio do reino de Lynch. O equivalente de um “não entendi, Laerte”. E se a sua obra é tão marcada pela confusão (dos espectadores, nunca do diretor), como é possível descrevê-la ou explicar a sua importância? E deveríamos explicar? Lynch mesmo preferia que não tentassem racionalizar seus filmes.
Achei, de todo modo, que deixar a morte de Lynch passar e publicar uma crítica de “Lobisomem” na segunda-feira, como se nada tivesse ocorrido, não seria adequado. Não por uma suposta obrigação em cobrir “eventos importantes”, mas por gratidão. E para, quem sabe, aproximar mais alguém de sua obra – que é tudo o que eu posso fazer como crítica de cinema.
Sei, de antemão, que não há nada que eu possa verbalizar que vá penetrar as camadas mais profundas da consciência como ele conseguia fazer. Porque Lynch vivia num universo onde as palavras só apequenavam os seus sentidos.
Afirmei, mais acima, que o diretor foi um dos artistas mais importantes do século 20, mas não por ignorar o que ele fez nos últimos 24 anos de vida. É por acreditar que a sua sensibilidade não poderia estar mais distante do cinismo típico deste século. Lynch não é pós-moderno ou referencial. Ele era uma nascente, não um afluente.
Seus filmes não têm conceitos desnecessariamente complicados, como “A Origem” ou “Tenet”. Christopher Nolan, como muitos outros, abusa destes artifícios “cerebrais” como se vestisse uma máscara para esconder a ausência de um rosto. Por sua vez, Lynch nunca tentou cobrir a si mesmo com um manto de intelectual. Ele nunca exigiu ser compreendido.
Por trás de todas as estranhezas, que tanto amedrontam os espectadores mais casuais, o tema principal de Lynch não poderia ser mais básico: como podemos sobreviver na batalha eterna da humanidade entre o bem e o mal? E a sua resposta não poderia ser mais direta. É pelo amor, pela doçura, pelo carinho, pela aceitação radical das particularidades de cada ser humano.
Antes de sermos todos soterrados por vídeos de “final explicado” gerados por inteligência artificial, que presente foi estar viva ao mesmo tempo em que um artista tão singular e insubstituível como Lynch! Sei que, no futuro, vou me recordar também de outra declaração, a da atriz Naomi Watts, de “Cidade dos Sonhos”:
“Como ele conseguiu me ver quando eu estava tão bem escondida que até eu mesma tinha me perdido de vista?”