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O que torna a arte interessante são os esquisitões.
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Uma tiktoker processa a outra por direitos autorais. Ambas são “clean girls”, garotas monocromáticas que vivem em de tons de bege, areia, gelo e nude (estética que nenhuma das duas inventou). Um excelente artigo no The Verge aproveitou o caso para falar da uniformização ocasionada pelo algoritmo das redes sociais – algoritmo que vem dando sinais de esgotamento.

Sob o comando de Elon Musk, o Twitter se tornou uma pororoca radioativa – o encontro borbulhante do nazismo com tramoias em geral. Usuários passaram a receber notificações de contas que não estavam seguindo e o bloqueio foi enfraquecido. A rede se tornou, por fim, o megafone do dono. Não importa o que você quer ver por lá.

E, assim, milhões foram para o Bluesky, onde os usuários têm um controle maior do conteúdo consumido (inclusive, com ferramentas para evitar comportamentos abusivos). Mark Zuckerberg, do abandonado Threads, já está copiando recursos do Bluesky, com timelines menos voltadas às recomendações (anúncios) e com mais postagens de quem você segue de fato.

Será que já não estamos cansados das “tendências” empurradas pelos bilionários? Seja na moda ou na ideologia política, é certo que eles não estão preocupados com o bem-estar da ralé. Até os produtos genéricos, promovidos pelas “clean girls” do TikTok, têm como objetivo alcançar um público cada vez maior e aumentar as vendas da Amazon.

Já está difícil encontrar móveis e artigos de decoração que não sejam de cor branca, preta, cinza ou bege. Qualquer item com um pouco mais de personalidade é caríssimo. A auto-expressão é agora um luxo. Os bilionários podem comprar um sofá roxo, se quiserem. A nós, resta a massa amorfa criada por algoritmo – e pior, deve ser dropshipping.

O curioso é que, mesmo neste mar induzido de mesmice, ainda queremos proclamar autoria. Quem não desenha quer poder desenhar. Quem não cria quer poder criar. Este é o “encanto” da inteligência artificial generativa, a expressão descomplicada (e, na maioria esmagadora dos casos, desmiolada, despropositada e desinteressante).

Entre vários outros temas, “Wicked” também trata disto. Glinda e Elphaba, colegas de quarto na mesma universidade, são polos opostos. Elphaba tem um talento natural para a magia, algo que desperta a inveja de Glinda. Ainda que Glinda não se vista como os outros, ela é heteronormativa, sempre se adequando ao que é esperado dela (ser feminina, loira, popular).

Já Elphaba é uma excluída. É a única de pele verde – metáfora óbvia para tratar de racismo, mas que serve também para outros tipos de discriminação. A princípio, ela quer que o Mágico de Oz realize o seu sonho, isto é, que a torne “normal” ao curá-la de sua “verdice” – sentimento bastante comum em grupos marginalizados.

Historicamente, o diferente sempre foi castigado. Das crianças canhotas que tinham os braços amarrados para se “tornarem” destras até a juventude trans que tem hoje os seus tratamentos negados. A chamada “cura gay” tem exatamente o mesmo princípio das terapias de aversão aplicadas tão cruelmente em crianças autistas no século passado.

Mas é também a “verdice” de Elphaba que a torna tão única (literalmente, inclusive). Longe de mim insinuar que o sofrimento é um pré-requisito da arte – neste caso, representada pela magia, o ato de desafiar a gravidade e concretizar uma intenção. A vivência das minorias não deve ser definida pelo sofrimento, mas simplesmente pela perspectiva diferenciada.

O falecido Steve Albini, um dos adeptos do Bluesky antes mesmo do grande êxodo do Twitter, publicou lá o seguinte:

“O que torna qualquer coisa interessante, música, arte, literatura… é esquisitões. As pessoas mais estranhas da parada. Trambiqueiros de NFTs, crypto, blockchain, todos eles são os caras mais monótonos, ultrapassados e chatos do planeta. Não só héteros, mas normais em todos os sentidos. Genéricos.”

Para complementar, trago também um trecho de um texto publicado pela escritora A.L. Goldfuss:

“É daí que vem a punição. Não é que as pessoas acreditem mesmo que a arte não serve para nada. Elas têm inveja de quem é pago para fazer arte. Pois também gostariam de ser pagas. Elas acham que criar é algo alegre, por menor que seja a tentativa. Há arte e há trabalho, e você só merece dinheiro se sofrer. Você só merece comida, abrigo, uma poupança, um carro, segurança e tranquilidade, se você passar metade do seu dia fazendo algo que você odeia para alguém que não se importa com você.”

Nos atacam porque, em reino de bege, quem tem verde é rei.

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