Há pouco tempo, depois que um editor da Marvel confirmou que, na continuidade oficial dos quadrinhos, não haveria COVID, um gringo viralizou no Bluesky com um comentário insano:
“O apagamento da COVID pela indústria do entretenimento desempenhou um papel enorme na sanção do abandono da saúde pública pelo governo. Os artistas são cúmplices no estrago ainda sendo causado pela COVID. Que diferença eles fariam se retratassem a pandemia em sua obra.”
Com uma cobertura vacinal não tão boa quanto a nossa, os americanos ainda sofrem com repetidas reinfecções – e, por uma mistura de preocupação justificada com obsessão histérica, há aqueles que passam o dia apontando culpados, sejam reais ou imaginários. Se os tech bros subestimam a importância da arte na sociedade, há também quem acredite que ela é capaz de fazer mágica (ambos, no entanto, acreditam numa visão puramente utilitária).
Assim, a arte poderia resolver todas as mazelas do mundo – se os artistas, pelo menos, se empenhassem em retratar os nossos problemas e não fizessem tanto corpo mole. É assim que funciona, certo? Depois que Charlie Chaplin fez “O Grande Ditador”, nunca mais tivemos guerras. E se o Capitão América aparecer usando uma NF95, o coronavírus será finalmente erradicado.
Não estou menosprezando a importância da arte em evidenciar certas questões, longe de mim, mas escritores e ilustradores não podem ser responsabilizados por uma pandemia. Nem fotógrafos, pintores ou diretores de cinema. Dito isto, a arte vem sim retratando a COVID – não de maneira direta, mas por meio de metáforas, que é como os artistas costumam trabalhar.
Na prequela “Um Lugar Silencioso – Dia Um”, deixamos a família de John Krasinski de lado para nos concentrarmos em personagens novos. Interpretada por Lupita Nyong’o, Sammy tem câncer terminal e vive entediada num asilo, rodeada de idosos. Reuben, um cuidador vivido por Alex Wolff, decide levar os pacientes até o centro da cidade para ver uma peça de teatro e, com a promessa de uma legítima pizza novaiorquina, convence Sammy a ir junto.
Um introvertido diria que sair de casa é sempre um erro – e, neste caso, é mesmo. Durante o passeio, a cidade é atacada pelos alienígenas sensíveis ao barulho. Um teatro com isolamento acústico seria o local ideal para se proteger, mas Sammy está decidida a comer uma última fatia de pizza antes do apocalipse e parte com o seu gato de apoio emocional, Frodo (sim, Sammy e Frodo).
Qualquer cena de ataque em Nova York, ainda mais com as pessoas cobertas pelo pó dos escombros, nos remete imediatamente ao 11 de setembro (sim, Sammy, Frodo e as duas torres). Ver a cidade vazia e silenciosa, porém, nos lembra a quarentena. E se a sobrevivência dos personagens depende do bom senso de estranhos, bom, estamos falando de COVID – mesmo que as regras da franquia já tenham sido estabelecidas em 2018.
“Dia Um” conta com o roteiro e a direção de Michael Sarnoski, que estreou com o longa “Pig – A Vingança”, um dos trabalhos mais inspirados da longa carreira de Nicolas Cage. Não é à toa, portanto, que todos os atores estejam tão bem em seus papéis. Além de Lupita, que já pode ser considerada como uma musa do terror, temos também o inglês Joseph Quinn, que deve estourar com “Gladiador 2” e o novo “Quarteto Fantástico” (o rapaz gosta de números).
Quinn interpreta Eric, um engravatado aleatório que cruza caminho com Sammy e que, em estado de pânico, acaba colando nela. “Dia Um” é, em grande parte, silencioso, mas abusa – no bom sentido – de subterfúgios para incluir alguns diálogos, como o barulho de uma fonte num parque ou de uma tempestade. Mesmo assim, Quinn e Nyong’o se comunicam muito bem só com os olhos.
É um prazer ver um filme que dependa tanto de suas imagens, dispensando a palestrinha. Em “Dia Um”, botar o pé na rua já é um risco, imagine lidar com uma multidão de pessoas em pânico – que, mesmo sabendo que as criaturas são atraídas pelo som mais sutil, começam a berrar, se colocam em perigo e provocam a morte dos demais. Para quem viveu 2020, não é preciso explicar nada disso. E, apesar da importância da arte, não será a última vez que os humanos agiram de maneira irracional.