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Na nova sequência de "Alien", a temática da violação da autonomia alheia nunca foi tão evidente. Pelos piores motivos.
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Este é um texto sobre “Alien: Romulus”, mas vamos dar um passeio antes.

Durante as Olimpíadas, babacas de extrema direita como J.K. Rowling e Elon Musk espalharam a notícia falsa de que a boxeadora Imane Khelif seria, na verdade, um homem. O maior alvo dessa ala demente do espectro ideológico sempre foram as mulheres trans – Musk, aliás, tem uma filha trans que ele mesmo considera como morta.

A “novidade” aí, que não surpreende ninguém atento ao que essa gente fala, é o ataque raivoso a uma mulher cisgênero. Seja lá qual for o seu entendimento de gênero, Khelif nasceu com órgãos sexuais femininos, foi criada como mulher e se identifica como mulher. Para compreender o que ocasionou essa conspiração toda (que envolve até Vladimir Putin), recomendo este vídeo.

Mas colocando os detalhes do caso de lado, o propósito da transfobia nunca foi oprimir “apenas” as pessoas trans. Já é bastante cruel perseguir aqueles que mais sofrem com a violência e o preconceito, mas o objetivo sempre foi fazer com que todos se atenham aos papéis definidos pelo patriarcado – o homem é o provedor, a mulher fica em casa e cuida dos filhos (todos brancos, é claro).

Assim, a mulher cisgênero que não é “feminina o suficiente” se torna um alvo. E o homem cisgênero que não é “masculino o suficiente” também se torna um alvo. Na história da humanidade, o ódio nunca se satisfez com a perseguição de uma única minoria – ele precisa continuar odiando cada vez mais, como um câncer que consome um órgão após o outro, até tomar o corpo todo.

Não é à toa que os pivôs dessa campanha difamatória sejam bilionários como Musk e Rowling. Seus interesses financeiros dependem da subjugação daqueles que contestam as normas da sociedade. Afinal, alguém que se conforma com tudo o que lhe é proposto não irá jamais questionar os planos dos mais poderosos.

A finalidade do conservadorismo é a dominação total de todos os aspectos da vida – do que podemos fazer como grupos políticos até os nossos próprios corpos. Sempre que o aborto é discutido, por exemplo, usamos a expressão “autonomia corporal”, isto é, a capacidade de fazer escolhas sobre os nossos corpos, sem violência ou coerção.

E adivinhem só do que “Alien” se trata – uma criatura estranha que invade o corpo e brota do torso num jorro de sangue, eliminando o seu hospedeiro?

Não sou a primeira nem a última a falar da franquia de Ridley Scott como uma parábola sobre o aborto, algo debatido há décadas por críticos e acadêmicos. Com o novo “Alien: Romulus”, no entanto, a temática da violação da autonomia alheia é ainda mais evidente. Porque o próprio filme viola a autonomia alheia.

Na sequência dirigida pelo uruguaio Fede Álvarez, que fez uma boa refilmagem de “Evil Dead” em 2013, há um deepfake. Para evitar spoilers, não vou dizer de quem é (para descobrir, basta uma olhadinha na lista de elenco), mas é algo como o Tarkin de CGI em “Rogue One” – ou seja, uma pessoa que não concordou em fazer parte da produção, mas cuja aparência foi usada assim mesmo, tudo graças ao “milagre da tecnologia”.

Quando o comercial da Volkswagen com a figura de Elis Regina foi lançado, alguns se emocionaram, outros ficaram horrorizados. Eu me vejo (muito frequentemente) entre os horrorizados. Para mim, não importa se a família autorizou ou se a cantora “teria topado”. É a imagem de uma pessoa que, em vida, jamais imaginou que algo assim fosse possível e que, portanto, não impôs qualquer proteção legal ao seu uso.

Para além dos tribunais, trata-se de uma questão ética. Ninguém tem a autorização de tomar algo que não lhe pertence e de usá-lo para o fim que for. Nós somos os donos dos nossos trabalhos, dos nossos corpos e das nossas vozes. E se não há como pedir permissão ao “titular”, o uso comercial por uma megacorporação não deveria só ser vetado como também rechaçado.

A desfaçatez de “Alien: Romulus” é tamanha que, além de utilizar o tal deepfake – por sinal, um dos mais mal feitos que eu já vi – durante o filme todo, por repetidas vezes, e num papel crucial para a trama, os roteiristas ainda deram um jeitinho de encaixar uma mensagem anticapitalista. Ou seria o androide programado para priorizar os interesses inescrupulosos de uma empresa, em vez da segurança dos jovens tripulantes da nave, um novo tipo de herói na ficção-científica?

Oras, há algo mais distópico do que ver os nossos mortos exumados e reanimados digitalmente, com o único intuito de gerarem ainda mais lucro do que já geraram em vida? Os mais ricos não se contentam em ditar o que fazemos com os nossos corpos vivos, precisam também profanar os nossos cadáveres e saquear os nossos túmulos? Quando eu morrer, por favor, me deixem em paz.

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