Não é exagero dizer que, em 1999, as irmãs Lana e Lilly Wachowski revolucionaram o cinema. Seja do ponto de vista tecnológico, com o advento do “bullet time”, ou pelo conteúdo filosófico de “Matrix” – referenciado tanto por estudiosos da teoria queer como conspiracionistas de direita (quem vive no Twitter deve se lembrar da resposta que Lilly deu a Ivanka Trump e Elon Musk).
Por trás dos óculos escuros e dos casacos de vinil, no entanto, “Matrix” sempre foi trans. Interpretado por Keanu Reeves, Thomas Anderson rejeita o binarismo da simulação criada pelas máquinas e passa por uma jornada de transição para se tornar quem ele realmente é: Neo, novo, único, livre de qualquer amarra imposta a ele.
Nos dias de hoje, em meio a tantas franquias feitas com o objetivo de atender às demandas mais estúpidas dos fãs e de gerar recordes de bilheteria, é praticamente inimaginável que um blockbuster pudesse ter sido tão inovador e ousado – uma história original, bem filmada e com algo a dizer!
Depois de mais de duas décadas do lançamento do original, Lana Wachowski retorna (sozinha) com “Matrix Resurrections” para remar contra a maré da mediocridade da Disney e nos oferecer algo diferente e inesperado, que nos faça pensar e sentir de novo, ainda que o resultado seja imperfeito.
Logo no início, “Resurrections” avisa ao espectador que não irá ceder à nostalgia e entregar mais do mesmo. Inserido na simulação, Thomas Anderson surge como um designer de videogame. Seu maior sucesso é um jogo chamado “Matrix”, aparentemente inspirado pelas suas próprias experiências como Neo, que ele agora trata como se fossem sonhos ou ilusões.
Como um vislumbre dos bastidores da Warner, o sócio de Anderson, vivido por Jonathan Groff, diz que eles precisam fazer um novo “Matrix” e que o jogo será feito com ou sem ele. Voltar a este universo, porém, parece prejudicar sua saúde mental – todos os dias, ele toma uma pílula azul para reprimir as suas memórias.
Após ser libertado da simulação mais uma vez, Neo descobre que se passaram 60 anos desde que ele e Trinity (Carrie-Anne Moss) sacrificaram as suas vidas pela revolução humana. Ele precisa decidir, então, se deve libertar Trinity da nova matrix ou se irá deixá-la viver como Tiffany, uma mãe apaixonada por motocicletas.
“Resurrections” pode não ter o mesmo frescor do primeiro filme, mas ainda oferece mais sustância do que a maioria dos blockbusters atuais. Com a fotografia cálida de John Toll e Daniele Massaccesi, as cenas de ação coreografadas por Chad Stahelski (o mesmo de “John Wick”) não são tão limpas quanto as de Yuen Woo-ping.
Em entrevistas, a diretora disse que o visual preciso do primeiro filme, com enquadramentos milimetricamente planejados, tinha a ver com a sua tentativa de controlar a própria narrativa, porque ela mesma se sentia fora de controle. Depois de passar pela transição, seu trabalho se tornou mais livre visualmente.
A mudança pode afastar os espectadores que priorizam o estilo em vez da substância. Como crítica de cinema, acostumada à mesmice, é difícil não me apaixonar por um filme comercial que ousa ser pessoal e radicalmente romântico.