Escrevi sobre “A Substância” há mais de um mês e fico feliz em ver que os temas retratados ainda estão sendo debatidos. Não porque eu tenha adorado o filme, mas por achar que qualquer discussão em torno de uma obra tão estranha (para os padrões dos casais que só frequentam cinemas de shopping) é produtiva.
A namorada/esposa/corna (não me importa o status do relacionamento) do Neymar viu “A Substância” e, mesmo dizendo que tinha detestado, é ótimo que ela mencione uma produção tão alternativa, do ponto de vista Hollywoodiano, em seu perfil do Instagram.
Mais pessoas vão querer conferir o que a influencer chamou de “um dos piores filmes da minha vida”. E mesmo que só uma de cada mil seguidoras suas vá, de fato, assisti-lo, ainda é possível que alguma sementinha vire flor.
De tempos em tempos, temos esses fenômenos que furam a bolha cinéfila e atingem os desavisados bem na cara. Já vi alguém se referindo à “A Substância” como o “Bacurau” do momento. Todos comentam, todos querem assistir – mas “Bacurau” se encerrava na conclusão de que gringo tem mesmo é de se foder, o que é incontestável, e a conversa parava ali.
Quando os créditos sobem, depois do desfecho escalafobético de “A Substância”, acho que muitos devem se perguntar “por que alguém faria algo assim?” – e uma reflexão de trinta segundos que seja sobre os possíveis motivos da autora já é válida para, talvez, quem sabe, porventura, pensar no cinema (e no cinema de terror) de uma outra maneira.
“A Substância” trata do sofrimento que é viver sob a imposição de um padrão de beleza. Mas podemos ir além da estética. Tudo o que consumimos é ditado por um algoritmo hipervigilante, cujo verdadeiro propósito é destruir qualquer evidência do diferente, apagar qualquer curvinha que não esteja “no lugar certo”. Reprimir, enfim, toda manifestação que não seja economicamente vantajosa para um grupo diminuto de bilionários.
Não é por acaso que estão nos empurrando a inteligência artificial goela abaixo, apesar da gigantesca demanda de energia, do estrago catastrófico que ela provoca ao planeta e da ausência acachapante de benefícios concretos que a justifiquem. Pois o objetivo é produzir um amontoado disforme de carne humana, não muito diferente do monstro Elisasue. Uma massa indistinta, precarizada, sem agência ou real capacidade de expressão.
A IA é, afinal, uma ferramenta de homogeneização fundamentalmente fascista. Mas calma, este também não é mais um texto em que eu falo mal da tecnologia, embora tenha sido um passatempo divertido neste ano.
Quero dizer que, quando tudo ao nosso redor nos obriga a ter as mesmas aparências, consumir as mesmas coisas e ter as mesmas opiniões, o grotesco é um tremendo de um abre-alas para a divergência passar.
E não é fácil manipular o grotesco como pensam que é. O choque não pode ser muito forte, ou o público teria ojeriza e não suportaria até o fim, mas também não pode ser de todo inócuo, ou não suscitaria reação alguma.
Indiferente da minha avaliação, “A Substância” conquistou este delicado equilíbrio do grotesco e, com litros de sangue falso, expôs pessoas “normais” (tão normais como uma namorada do Neymar) a ideias que elas não estão acostumadas a ver. E que bom!
Os humanos são programados para interpretar o diferente como uma ameaça. Instantaneamente. Em um estudo, descobriram que crianças autistas tinham uma probabilidade maior de causar uma primeira impressão negativa em adultos neurotípicos – mesmo sem serem informados de que elas eram autistas.
Os adultos que melhor avaliaram as crianças do experimento eram aqueles que já tinham tido experiências positivas com outros autistas – isto é, aqueles que já tinham familiaridade com suas características e que, por consequência, não temiam e nem se incomodavam mais com elas. A diversidade de que tanto falam não é um conceito vazio, mas uma questão de sobrevivência.
No cinema, o terror costuma ser menosprezado como uma arte inferior – isto quando é considerado como arte. E daí temos aquelas dúvidas estapafúrdias, “mas se ‘A Substância’ toca em temas tão importantes assim, como é possível ser terror?”; ou divisões arbitrárias entre o que seria “trash” e o que seria um “terror elevado”.
Os gêneros cinematográficos não são definidos pelo gosto ou pelas avaliações no Rotten Tomatoes, mas por convenções estilísticas e todo um conjunto de tropos narrativos que dialogam com décadas de tradição. Basta ver todas as referências embutidas em “A Substância”.
Mais do que isto, porém, o terror trata de tudo que, como sociedade, fomos ensinados a suprimir e sufocar; de tudo que é estranho e pode nos causar agonia ou confusão. Um território dolorosamente conhecido daqueles que nunca se sentiram à vontade no próprio corpo e que dependem de uma empatia ainda muito, mas muito anêmica.
Todos os horripilantes monstros de látex, dos mais canastrões aos mais profissionais, são meus amigos, meu refúgio – até o suquinho de Elisasue. Feliz Halloween a todos que, por um motivo ou outro, já foram perseguidos por turbas raivosas com tochas em mãos.