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Como uma série perdeu todas as suas qualidades no decorrer de três temporadas?
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Alerta: spoilers! 

 

Escrevi sobre Ted Lasso em 2021, depois que a série venceu o prêmio Peabody por “oferecer o perfeito contra-ataque à prevalência duradoura da masculinidade tóxica, em um momento em que a nação precisa de modelos inspiradores de gentileza”. A série surgiu em plena pandemia, durante a corrida presidencial dos Estados Unidos, quando todos nós precisávamos de boas notícias.

Foi o casamento perfeito entre um dos piores períodos de nossas vidas e um entretenimento que era como uma caneca de chocolate quente numa noite fria. O sucesso inesperado rendeu um recorde de indicações ao Emmy e, de repente, o personagem bigodudo de Jason Sudeikis se tornou o carro-chefe da Apple – que, até então, nunca tinha conseguido emplacar um sucesso dessa magnitude.

A quantidade de prêmios, no entanto, talvez tenha prejudicado “Ted Lasso” – que, em sua terceira temporada, assumiu um tom presunçoso de palestrinha e caiu num sentimentalismo barato de comercial de dia das mães do Boticário. Desde o primeiro episódio, “Ted Lasso” sempre foi sentimental e “good vibes”, mas a última temporada é quase uma paródia de suas boas intenções.

O primeiro pecado foi o da vaidade, acharem que uma sitcom deveria ter episódios de mais de uma hora e com muito pouco conteúdo para preencher esses minutos, apesar da quantidade considerável de personagens. De repente, tivemos de aturar jantares entre Keeley e Rebecca que só tinham o propósito de revisar os acontecimentos – cenas com pouquíssimas piadas, de ritmo lerdo e que, invariavelmente, terminavam num abraço forçado.

É claro que é divertido ver Jamie Tartt ensinando Roy Kent a andar de bicicleta, mas era mesmo necessário dedicar mais do que cinco minutos a isso? A terceira temporada de “Ted Lasso” lembra o castigo do menino gordinho em “Matilda”, obrigado pela diretora a comer um gigantesco bolo sozinho – só que, desta vez, o responsável pela dor de barriga nem imagina que está castigando os seus espectadores.

O mais absurdo de tudo é que, apesar do tempo sobrando, decisões importantíssimas ocorrem em off, como se os roteiristas não soubessem embasar esses eventos e optassem por distribuir um memorando do que aconteceu. Roy e Keeley terminaram. Por quê? Para criar um conflito na narrativa e por nenhum outro motivo que faça algum sentido para os personagens.

Nate pediu demissão. Por quê? Sei lá, é preciso fazer com que Nate e Ted façam as pazes no final, então vamos começar o episódio com essa informação já dada. A propósito, o arco de Nate é o mais enlouquecedor da série. Durante toda a segunda temporada, Nate vai acumulando ressentimentos – a transformação é visível, com os cabelos brancos e as roupas escuras – para, no fim, resolver todos os seus problemas porque arranjou uma namorada.

É um brilhante argumento incel, um vilão que supera todo um histórico de rejeições e maus tratos porque conseguiu transar com uma garota cujo único traço de personalidade é fazer uma expressão de aprovação sempre que o namorado faz algo certo. Aliás, sempre que um personagem masculino precisa de resgate, os roteiristas jogam uma namorada ou uma mãe de paraquedas. Estamos aqui, afinal, para curar os traumas dos homens.

Essa misoginia velada, quase inconsciente, é compensada, é claro, pela importantíssima lição de que é errado vazar os nudes das mulheres, numa cena tão natural quanto um diálogo educativo do “Telecurso 2000”. “Ted Lasso” levou a sério o papel de combate à masculinidade tóxica, mas o que antes fazia de forma simpática e sincera virou uma obrigação protocolar.

Assim, a terceira temporada de “Ted Lasso” aborda temas cruciais como homofobia e xenofobia, mas sempre de um jeito meio solto, apenas para constar. Há um episódio de uma ingenuidade constrangedora em que Rebecca convence uma mesa de bilionários a desistir de uma proposta lucrativa apelando às suas crianças interiores – e também querendo nos convencer de que esses bilionários são, bem lá no fundo, pessoas boas.

Em comparação com 2021, estamos todos vivendo um período muito melhor agora, mesmo que nada seja perfeito. Sempre será necessário reafirmar às pessoas que é bom e importante sermos gentis uns com os outros, mas “Ted Lasso” se tornou o tipo de amigo que abraça com segundas intenções. É melhor checar se a sua carteira continua no lugar.

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