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Os papéis que desempenhamos diante da sociedade e os que interpretamos entre quatro paredes, quando dois adultos consentem.
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“Babygirl” começa com os gemidos de Romy fazendo sexo com o marido. Interpretada por Nicole Kidman, ela sacode os cabelos de maneira quase cômica, como se emulasse uma atriz pornô delirando de prazer. A cena dentro da cena pode parecer realista aos homens, mas qualquer espectadora sabe reconhecer que a personagem está fingindo um orgasmo.

Robert Duvall disse, uma vez, que o seu objetivo como ator – e também o de seus melhores amigos, Dustin Hoffman e Gene Hackman – era “viver de maneira verdadeira em um conjunto de circunstâncias imaginárias”. Ou seja, ainda que toda arte envolva algum grau de mentira, é preciso que ela também transpareça algo de real. É preciso fingir, mas com honestidade.

Como em qualquer drama matrimonial, Romy está vivendo uma mentira. Ela nunca chegou ao clímax com o marido Jacob, vivido por Antonio Banderas, mas mantém as aparências porque considera os seus verdadeiros desejos “anormais”. Se “Babygirl” não fosse dirigido por uma mulher, talvez o problema fosse uma mera questão de carência emocional – mas não, é sexo mesmo.

A holandesa Halina Reijn, que também dirigiu “Morte Morte Morte” e “Instinto”, não menospreza os impulsos mais animalescos de sua protagonista, uma poderosa executiva na faixa dos 50 (Kidman tem 57) e mãe de duas filhas adolescentes. Romy não é uma dona de casa infeliz e entediada, como num melodrama batido, mas uma mulher de negócios plenamente realizada.

Jacob também não é um crápula, o que poderia justificar uma traição. Banderas foi escalado para o papel do marido justamente por representar a grande fantasia de múltiplas gerações de mulheres (e homens). Ou seja, não há um motivo razoável que explique o rendezvous de Romy com um estagiário muito mais novo.

Ao som de INXS – “Never Tear Us Apart” e George Michael – “Father Figure”, é evidente que “Babygirl” dialoga com os suspenses eróticos da década de 1980, como “Atração Fatal” ou “9 1/2 Semanas de Amor”. O grande diferencial é ver a mulher em um cargo de chefia tendo um caso com o subalterno, e não o contrário.

“Babygirl” trata de “role-play” – isto é, dos papéis que desempenhamos diante da sociedade e também dos papéis que interpretamos entre quatro paredes, quando dois adultos consentem à encenação. Numa situação imaginária entre dominador e submisso, pode haver mais sinceridade do que no cotidiano, quando, em tese, não estamos fingindo nada para ninguém.

Artistas como Robert Duvall entendem isto muito bem. A verdade aflora por meio de um artifício, um quadro, um filme, um livro. Como seres humanos, nos comunicamos melhor quando nos abrimos às possibilidades da imaginação, quando nos entregamos ao ridículo – e Romy só pode vivenciar essa fantasia graças ao seu status social.

“Babygirl” e “Anora” (este último estreia já na semana que vem) têm protagonistas em situações opostas. Romy é uma mulher poderosa, que pode se dar ao luxo de saciar os seus desejos de submissão porque, a qualquer momento, ela pode retornar à segurança da realidade, onde é protegida e respeitada.

Fãs de montanha-russa gostam do brinquedo porque sabem que há um fim. Ninguém quer viver num estado perpétuo de adrenalina. Como suspense, “Babygirl” propõe que, apesar de seus privilégios, Romy nem sempre vai poder descer do passeio quando bem entende. Algo que o filme resolve de maneira positiva, quando poderia facilmente descambar ao puritanismo ou ao “slut-shaming”.

Já Anora, a dançarina de striptease que dá nome ao filme de Sean Baker, vive em função dos desejos alheios. Numa tentativa de ascender socialmente, ela é submissa o tempo todo, mesmo não querendo ser. E todo o seu drama se dá por conta desta tensão – de um desejo que o mundo não permite que ela concretize ou mesmo reconheça a existência.

Não faço esta comparação para colocar uma obra contra a outra, muito menos uma personagem contra a outra. Ainda que a arte não seja estritamente “necessária”, penso que precisamos destas duas histórias. Uma ficção deliciosa, em que a mulher tem autonomia para se envolver com alguém que lhe satisfaça; e uma tragicomédia sobre um desequilíbrio de poder bastante realista.

Sempre achei Nicole Kidman um tanto artificial na maioria de seus papéis, mesmo os mais elogiados. Em “Babygirl”, porém, há um candor que considero inédito, tanto nas cenas de sexo como em cenas mais sensíveis (numa delas, sua filha tira sarro do rosto cheio de botox da mãe, questão já muito debatida durante a sua carreira, assim como na de Demi Moore).

Sua performance é corajosa, mas não por se despir diante das câmeras beirando os 60 anos e simular momentos de prazer com um jovem ator de 20 e poucos, mas por permitir que a realidade transpareça, mesmo com todo o glamour envolto ao seu nome. Por se entregar, enfim, à brincadeira. Sem medo do que ela possa revelar.

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