Roupas brancas estendidas no varal. Uma estrada de ferro que corta um vilarejo em dois. Um bule vermelho apoiado no chão. O crítico Roger Ebert costumava chamar de “pillow shots” os planos de Yasujiro Ozu com detalhes arquitetônicos ou objetos do dia a dia – imagens que não adicionam uma informação essencial à narrativa, mas contribuem com a atmosfera geral de clássicos como “Pai e Filha” (1949) e “Era Uma Vez em Tóquio” (1953). Ao contemplar as miudezas do cotidiano, o mestre do cinema japonês registrava as particularidades da vida e do espírito de seu povo. Indicado em 10 categorias do Oscar de 2019, “Roma” é como um filme de Ozu, só que passado no México e feito por um diretor mexicano: Alfonso Cuarón.
Além da similaridade estética, tanto Ozu como “Roma” abordam personagens comuns em histórias convencionais, tudo muito pouco Hollywoodiano. “Pai e Filha”, por exemplo, trata de uma “solteirona” que não planeja se casar porque não quer abandonar o pai viúvo. “Era Uma Vez em Tóquio” acompanha a viagem de um casal de idosos em visita aos filhos atarefados e indiferentes – só a nora, que não é do mesmo sangue, dá atenção aos dois. À sua maneira, Cuarón também discute laços familiares, e sob um ponto de vista raramente apreciado.
De origem indígena, Cleo (Yalitza Aparicio) é a empregada doméstica de uma família branca e de classe média, na Cidade do México dos anos 1970. É ela quem acorda os filhos da patroa Sofía (Marina de Tavira) e quem os coloca na cama. Quando a família se reúne para assistir tevê, no entanto, ela senta no chão por alguns instantes (não há lugar para ela) e já se levanta para recolher a louça suja – Cleo pertence à família, mas não faz parte dela. Abandonada pelo namorado logo após engravidar, ela conta com o suporte ambivalente da patroa, que também passa por um complicado processo de divórcio. “Não importa o que falem, estamos sozinhas. Nós mulheres estamos sempre sozinhas”, diz Sofía.
Apesar de remeter à obra de Ozu, tanto em estilo como em conteúdo, “Roma” é essencialmente latino. De acordo com a especialista Lívia Fusco, o filme faz um panorama silencioso da América Latina. Com direção de fotografia assinada pelo próprio Cuarón, a Cidade do México lembra o centro antigo de São Paulo, com enormes cinemas de rua e vendedores ambulantes – o som do amolador de facas é também o mesmo. O diretor se concentra, sobretudo, na jornada pessoal de Cleo, mas entende que “Roma” desempenha um papel político ao retratar a vida mexicana. “O verdadeiro cinema ignora muros, tanto os reais como os imaginários”, Cuarón discursou em uma premiação recente.
Críticos menos preparados para o ofício, e/ou contaminados por ideologias próprias, vêm tratando “Roma” como uma espécie de “virtue-signalling”, ou seja, uma ostentação arrogante de quem se acha moralmente superior aos outros. Seja lá o que você pensa dos mexicanos, da política de imigração do presidente americano Donald Trump ou de empregadas domésticas em geral, a sensibilidade artística e a maestria visual de “Roma” são inegáveis – é tudo o que “Que Horas Ela Volta?” deveria ser e não foi. É a primeira grande obra-prima produzida pela Netflix, que já está revolucionando o meio, e forte merecedora do Oscar de melhor filme de 2019.