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A aversão ao conflito é uma ameaça à arte.
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Há poucos dias, vi o print de uma pessoa (muito jovem, eu espero) chocada com o romance “Lolita”. Para ela, ninguém deveria ler o clássico de Vladimir Nabokov porque ele trata do professor Humbert Humbert e de sua fascinação por Dolores, uma menina de 12 anos.

O erro mais óbvio desse raciocínio é, obviamente, achar que o autor a tinha intenção de que seus leitores aprovassem as atitudes do protagonista – mas há um engano muito mais profundo na raiz desse equívoco cada vez mais comum.

Há, de fato, um esforço para revisitar obras do passado e encontrar ali o que havia de problemático, como uma forma de reflexão moral que até pode ser frutífera, dependendo do caso. E nem é preciso voltar até 1955, quando “Lolita” foi publicado.

No YouTube, tenho visto muitos vídeos de reação a reality shows da década de 2000, período que poderia ter se beneficiado da chamada “cultura do cancelamento”. No britânico “What Not to Wear”, por exemplo, as apresentadoras destruíam a autoestima das participantes e agarravam suas partes íntimas sem consentimento.

Em “America’s Next Top Model”, modelos de 18 ou 19 anos eram incentivadas a trabalhar doentes, em condições perigosas (uma delas teve hipotermia depois de passar horas numa piscina gelada durante uma sessão de fotos) e suportando assédio sexual – tudo sem reclamar.

Outros programas como “Extreme Makeover” ou o tenebroso “The Swan” ofereciam cirurgias plásticas como se fossem a solução definitiva para participantes com distúrbios mentais e/ou casamento fracassados – cabia à mulher a obrigação de sofrer pela beleza (uma “beleza” de acordo com um padrão muito específico) e de manter o marido satisfeito.

De certa forma, é positivo questionar ideias e atitudes que antes pareciam “normais”. É assim que progredimos como indivíduos e também como uma sociedade. No entanto, parte do desconforto com obras consideradas problemáticas, como “Lolita”, não tem a ver com as práticas representadas ali e sim com uma aversão a qualquer tipo de conflito.

Se todos os personagens agirem “corretamente” e tudo correr bem, o leitor/espectador não terá de lidar com emoções ou pensamentos negativos. Sentir alguma empatia por um personagem desprezível é um esforço muito grande, muito confuso. Precisamos ou apoiar e amar sem reservas ou recriminar e odiar sem um traço de compaixão.

A arte, no entanto, não é uma startup concebida para tornar a vida mais cômoda e descomplicada. A arte não é um “Uber” ou um “Ifood”. Muitos se encantam com as promessas patéticas de uma inteligência artificial que irá produzir livros ou filmes sob medida para cada um, sem perceber que o propósito da arte é nos desafiar com um ponto de vista que não seja o nosso.

Desde criança, sempre entendi a arte como uma forma de conhecer o mundo e de entender as pessoas ao meu redor – o crítico Roger Ebert, afinal, chamava o cinema de “máquina de empatia”. Se tudo o que eu consumir for feito especificamente para mim, com quem eu estaria me conectando? Quão limitada a minha visão de mundo seria?

Já sinto uma enorme pena por aqueles que só assistem a um determinado gênero de filme ou produções de um único país – o que dizer, então, de quem revê “The Office” pela quinquagésima vez quando poderia assistir algo novo?

Imagine quantas oportunidades perdidas de se surpreender e de se emocionar com algo criado por alguém com uma vivência completamente diversa da sua! Tudo o que poderia ter sido descoberto com um mínimo de curiosidade!

E é por isso que a tecnologia da inteligência artificial – que nada mais é do que uma máquina de plágio – é tão pavoneada por homens brancos e héteros, o demográfico mais resistente a qualquer tipo de contestação. Imagine as “obras” que esses homens tão avessos ao diferente irão criar para a própria (e solitária) satisfação…

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