Aos 85 anos, Ridley Scott não tem mais papas na língua. Criticado por exagerar ou mesmo inventar certos aspectos da vida de Napoleão em seu filme mais recente, o diretor inglês mandou os “malditos” historiadores arranjarem o que fazer. “Eles não estavam lá para saber,” resmungou durante uma entrevista.
Por séculos, a vida do imperador francês foi amplamente documentada e discutida. Por que um filme de ficção, que não se propõe a ser um documentário, deveria se ater à realidade? Já no lançamento do trailer, historiadores apontaram que Napoleão nunca atingiu as pirâmides de Gizé com balas de canhão – mas não é uma cena impressionante?
Se fôssemos realistas, Napoleão não poderia ser interpretado por Joaquin Phoenix – o ator tem 49 anos e Napoleão foi coroado aos 35. Josefina, por sua vez, era 6 anos mais velha do que o marido e, no entanto, é vivida pela britânica Vanessa Kirby, de apenas 35. Por algum motivo, já nos acostumamos com atrizes mais jovens e bonitas encarnando figuras históricas.
Em Hollywood, há de se obedecer algumas convenções para viabilizar financeiramente certas obras de arte, como ter nomes reconhecíveis encabeçando o elenco. Talvez, exista um rapaz francês de 35 anos que seja perfeito para o papel, mas assistimos “Napoleão” nos cinemas para ver um ator do calibre de Phoenix.
Da mesma forma, a batalha de Austerlitz pode não ter sido tão interessante quanto ela é no filme, mas que mal há em representá-la de outra forma? Neste caso, nenhum. Napoleão morreu em 1821 e há uma oferta enorme de livros e documentários sobre a sua vida. Por que um artista como Scott contaria a mesma história, de novo?
Em 2018, uma pesquisa concluiu que 45% dos adultos utilizam uma “segunda tela”, frequentemente ou sempre, quando estão assistindo televisão. A própria Wikipédia se assumiu como uma “experiência de segunda tela” – isto é, em vez de se entregarem à narrativa proposta, muitas pessoas procuram por informações enquanto estão assistindo alguma obra.
Exigir que a ficção reflita a realidade nos seus menores detalhes é compreender o papel da arte como nada além de uma cópia. E não é à toa que tantas pessoas são iludidas pela promessa de uma inteligência artificial que só regurgita o que já existe. Por outro lado, nem tudo é permitido quando tratamos de pessoas reais.
A sexta temporada de “The Crown”, por exemplo, vem sendo bastante criticada pela forma com que a morte da princesa Diana é retratada. Sem dar spoilers, é uma abordagem que busca colocar panos quentes nas críticas feitas à família real britânica – o que seria inofensivo se estivéssemos falando de um passado longínquo, sem qualquer repercussão no mundo atual.
Produzida pelos integrantes remanescentes da banda Queen, a cinebiografia “Bohemian Rhapsody” insinua de forma vil que foi a promiscuidade do vocalista Freddie Mercury (e, por consequência, a sua orientação sexual) que desfez o grupo, isentando os demais de qualquer responsabilidade – apesar de lucrarem, até hoje, com a memória do cantor.
A verdade é que, muito antes de reanimarem o cadáver de Elis Regina para estrelar o comercial de uma marca que foi favorável à ditadura no Brasil, a humanidade já explorava os seus mortos. Talvez, a única forma ética de moldar a vivência de alguém conforme a nossa própria vontade seja justamente como no caso de Napoleão, morto há dois séculos e com uma história já bastante difundida.
Mas não, ele não engravidou um cavalo.