Capitu traiu Bentinho? Monogamia mata? Como se chama isso na sua cidade? De tempos em tempos, as redes sociais são tomadas por alguma pauta reciclada que atrai os mesmos argumentos de sempre e não chega a lugar algum. Entre os cinéfilos, uma das pautas mais desesperadoras é a de que cenas de sexo não deveriam existir.
É uma opinião importada dos Estados Unidos, um país de histórico puritano, mas com uma nova e barulhenta geração de Perpétuas da novela “Tieta” – jovens da geração Z, de criação evangélica, que abominam o desconforto de ver um filme mais maduro ao lado dos pais. Inclua aí 15 anos de domínio da Disney, a conveniência do streaming (mais ninguém assiste “A Lagoa Azul” numa sessão da tarde, por acaso), e dá para entender onde chegamos.
Nós, nascidos na década de 1980, vimos o estrago da AIDS e, durante os anos 1990, era comum ligarmos a tevê e vermos algum sexólogo falando sobre sexo seguro com adolescentes, seja Dr. Jairo Bouer ou Marta Suplicy. Estranhamente, com a epidemia da AIDS sob controle, aquela abertura para encarar o tema desapareceu e o Brasil foi invadido por uma onda conservadora que tenta, até hoje, destruir qualquer discussão relacionada à sexualidade.
Afinal, fazer com que mais crianças e jovens sigam sem o vocabulário necessário para identificar um abuso é permitir com que velhas práticas, muito perpetuadas por figuras religiosas, continuem acontecendo. Falar sobre sexo – e mostrar o sexo – é revolucionário, pois promove um sentido de autonomia que é necessário para desafiar autoridades.
Fora, é claro, ser parte da experiência humana. E os filmes devem refletir a experiência humana, certo? Nos Estados Unidos,“Passagens” recebeu a classificação NC-17, isto é, proibido para menores de 17 anos. Já nos cinemas brasileiros, o filme dirigido por Ira Sachs fala de um triângulo amoroso entre um cineasta alemão vivido por Franz Rogowski, seu marido interpretado por Ben Wishaw e uma jovem professora – a Adèle Exarchopoulos, de “Azul é a Cor Mais Quente”.
A NC-17 caiu em desuso nos últimos anos, mas foi ressuscitada para “Blonde”, a cinebiografia de Marilyn Monroe e primeiro grande filme em quase uma década a receber a classificação – o que não fez muita diferença porque sua passagem pelos cinemas foi breve, já que a produção logo ficaria disponível na Netflix, onde ninguém é barrado por conta da idade.
Destaque no Festival de Sundance de 2023, “Passagens” ainda não tem data para estrear na plataforma da Mubi, e é também muito mais divertido de assistir em uma sala cheia – com cenas de sexo e tudo. Apesar de não mostrar nada excepcional, o filme recebeu indicação para maiores de 18 anos por aqui.
Tomas (Rogowski, também excelente em “Great Freedom”) vive um diretor obcecado pelos menores detalhes, da forma como um ator anda até o copo que uma figurante segura no fundo do plano. É o clichê do artista egocêntrico que, além de ser péssimo de aturar profissionalmente, é também uma pessoa horrível, um verdadeiro “boy lixo”.
Entediado com o marido Martin (Wishaw, a voz aveludada do ursinho Paddington), Tomas acaba fazendo sexo com Agathe (Exarchopoulos) e coloca as vidas de todos os envolvidos de cabeça para baixo. É evidente que Tomas só pensa nas próprias necessidades e sai machucando quem estiver no caminho, e é aí que entra o sexo.
Qualquer pessoa em sã consciência abandonaria Tomas sem grandes dificuldades se o sexo não fosse tão bom. Sachs filma as cenas mais íntimas em planos-sequência e sem closes. A câmera é quase sempre posicionada atrás de Tomas que, de forma simbólica, cobre o rosto do ator que está à sua frente – afinal, são as suas vontades que imperam.
Em “Passagens”, o sexo é importante para compreender as decisões dos personagens. No entanto, mesmo que não fosse importante ou “necessário” (como se alguma coisa dentro de um filme fosse “necessária”), o sexo deve fazer parte do cinema – não para “ensinar” crianças e adolescentes a transar, mas por fazer parte da vida e das dinâmicas de poder ao nosso redor.