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Um pouco do contexto histórico de um dos filmes mais importantes do cinema americano.
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“Mank”, o novo filme de David Fincher, estreia na Netflix nesta sexta-feira (04/12) e trata do roteirista Herman J. Mankiewicz. Ainda não assisti, mas já sei que Fincher aborda a questão da autoria de uma das obras mais importantes da história do cinema americano. Aqui, quis trazer um pouco do contexto histórico ao redor de “Cidadão Kane”.

Nas palavras de Orson Welles:

“‘Cidadão Kane’ conta a investigação realizada por um jornalista chamado Thompson no intuito de descobrir o sentido das últimas palavras de Kane. Pois, segundo ele, as últimas palavras de um homem devem explicar sua vida. Talvez seja verdade. Ele nunca descobre o que Kane queria dizer, mas o público, em contrapartida, sim. Sua investigação o leva a cinco pessoas que conhecem bem Kane, que o amavam ou detestavam. Elas lhe contam cinco histórias diferentes, todas bem parciais, de tal forma que a verdade de Kane só pode ser deduzida, como aliás qualquer verdade sobre um indivíduo, pela soma de tudo o que foi dito sobre ele. Para alguns, Kane só amava sua mãe; para outros, só amava seu jornal, sua segunda mulher e a si próprio. Talvez os amasse a todos, talvez não amasse nenhum deles. O público é o único juiz. Kane era ao mesmo tempo egoísta e desinteressado, era ao mesmo tempo um idealista e um canalha, um homem incrível e um indivíduo medíocre. Tudo depende de quem está falando. Nunca é visto através do olhar objetivo de um autor. A meta do filme reside, por sinal, mais na apresentação do problema do que em sua solução.”

“Cidadão Kane” foi exibido à imprensa em 9 de abril de 1941. De acordo com André Bazin, o filme foi um enorme sucesso de crítica, mas um péssimo negócio financeiro para a produtora RKO. Para o crítico francês, a obra-prima de Welles mostrou-se “decididamente acima da idade mental do espectador americano”. Até então, o flash-back era utilizado raramente e, em geral, sem superposição cronológica – em “Cidadão Kane”, o flash-back alcançaria a “dignidade de um ponto de vista metafísico”.

Welles também utilizou os recursos do plano-sequência, das lentes grandes angulares e da profundidade de campo de forma a criar o sentido da narrativa. Para Bazin, Welles subverteu as estruturas da linguagem cinematográfica, praticadas universalmente em torno de 1940, e aproximou o cinema da literatura ao empregar a decupagem como uma técnica constitutiva do sentido do roteiro: “Não é apenas outra forma de dirigir e encenar; questiona a própria natureza da história.”

Para a crítica Pauline Kael, no entanto, a genialidade de “Cidadão Kane” não é mérito de Orson Welles, mas do roteirista Herman J. Mankiewicz e do resto da equipe. Kael, que não era adepta da teoria do autor, acreditava que a ênfase na direção fazia com que grande parte da crítica ignorasse a natureza colaborativa do cinema de Hollywood. O cineasta Peter Bogdanovich, por sua vez, descobriu que Kael não havia entrevistado Welles ou outros membros da produção que pudessem contradizê-la.

O roteirista Charles Lederer, por exemplo, disse que Mankiewicz reclamava das mudanças de Welles no roteiro de “Cidadão Kane” mudanças que Katherine Trosper, então secretária de Welles, confirmou. Bogdanovich também conversou com o acadêmico Howard Suber, que alegou que Kael utilizou a sua pesquisa sem o devido crédito e ainda distorceu suas conclusões. Para Robert Carringer, que investigou os arquivos do estúdio, o trabalho de Mankiewicz foi fundamental, mas as revisões de Welles foram transformadoras.

Para fazer “Mank”, David Fincher se baseou em um roteiro escrito pelo seu pai, o finado jornalista Jack Fincher, na tentativa de definir a natureza da contribuição de Mankiewicz para o legado de “Cidadão Kane” e a história do cinema. Em entrevista, o diretor declarou que a versão original do roteiro de seu pai era condizente com o ensaio equivocado de Pauline Kael, mas Fincher teria suavizado o viés anti-Welles e centralizado a narrativa na relação de Mankiewicz com o magnata William Randolph Hearst, inspiração para o personagem de Charles Foster Kane.

Mesmo aliviando o viés anti-Welles do roteiro escrito pelo seu pai, David Fincher parece guardar algum ressentimento do diretor de “Cidadão Kane”. Durante uma entrevista, Fincher reconheceu a contribuição de Welles ao cinema, mas declarou: “Quando Welles diz que ‘leva só uma tarde pra aprender tudo sobre direção de fotografia’… Vamos dizer que esse é um comentário de alguém que teve a sorte de ter Gregg Toland [diretor de fotografia] por perto.” Fincher parece tão equivocado quanto Kael, pois Welles nunca deu essa declaração.

Em um documentário da BBC, o próprio Welles explicou que Toland queria fazer “Cidadão Kane”. “Isso é maravilhoso! Por quê? Eu não sei nada de cinema,” Welles indagou. “É por isso mesmo, porque teremos um filme que vai ser diferente,” ele respondeu. Durante a produção, a falta de experiência do diretor ficou evidente e foi Toland quem falou que lhe ensinaria tudo “em 3 horas”. Welles disse que isto se tornou uma “declaração pomposa” de que ele teria aprendido tudo tão rapidamente, mas a afirmação não partiu de Welles.

Em meados de 1939, quando Welles e Mankiewicz começaram a colaborar, Mankiewicz tinha 42 anos e já trabalhava em Hollywood há mais de uma década (em “O Mágico de Oz”, foi ideia dele filmar em tons de sépia os segmentos passados no Kansas). Apesar do talento inegável, Mank acumulava desafetos na indústria, além das dívidas que contraiu por conta do vício em apostas. Como antigo membro da mesa redonda do Algonquin, Mank queria ser dramaturgo e cultivava um desprezo profundo pelo cinema.

Welles, por sua vez, era um novato de apenas 24 anos, um gênio precoce que havia se tornado uma estrela do teatro aos 16, diretor de peças aos 20 e, em 1937, fundado a companhia do Mercury Theatre, ao lado de John Houseman. Com 23 anos, Welles já era um astro do rádio, onde fez a infame adaptação de “Guerra dos Mundos”. Para o crítico Richard Brody, Mankiewicz era visto como um “insider”, enquanto Welles era detestado pela sua juventude, sua fama meteórica e seu intelectualismo – fora a sua liberdade contratual.

Ao migrar para Hollywood, Welles exigiu que ele tivesse o controle sobre o corte final de suas produções, algo que era inédito no sistema dos grandes estúdios, onde os produtores exerciam um poder imenso. “Cidadão Kane” foi indicado em nove categorias do Oscar, mas ganhou apenas o prêmio de melhor roteiro, o que só acirrou a disputa pelos créditos do filme. No acordo original que Mankiewicz fez com Welles, Mank não seria citado nem mesmo como co-autor, mas sua carreira precisava do impulso.

De acordo com Richard Brody, o erro mais grave do ensaio de Kael foi não reconhecer que “Welles seria Welles mesmo sem Mankiewicz”. Ambos sofreram com os horrores de um sistema que impõe práticas comerciais à sétima arte (após o fracasso comercial de “Cidadão Kane”, Welles nunca mais gozaria da mesma liberdade artística), mas enquanto Mank era limitado pelo cinismo e por não enxergar o cinema como arte, Welles se tornou lendário na pretensão de ser visto como um artista.

Welles, afinal, se tornou ele próprio uma espécie de Cidadão Kane – para uns, um farsante que se apropriou do talento alheio; para outros, um dos inventores do cinema moderno. A realidade reside, muito provavelmente, em uma mistura dos dois. De toda forma, “Mank” já vem sendo massacrado pelo seu revisionismo. Para o historiador de cinema Joseph McBride, “se David Fincher quer que a gente acredite nesse tipo de bobagem, ele precisaria de um roteiro melhor. O próprio Mankiewicz zombaria de ‘Mank'”.

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