Logo depois que os primeiros episódios da série documental sobre o assassinato de Daniella Perez foram lançados, a Folha de S. Paulo publicou um texto de um advogado que dizia que não ouvir a versão de Guilherme de Pádua seria um “perigo” – uma opinião que gerou revolta e fez com que muitos defendessem “Pacto Brutal” com unhas e dentes.
De fato, há documentários que tratam tanto da perspectiva da vítima como do acusado – principalmente quando há dúvidas com relação à autoria do crime, como em “Making a Murderer”, em que um dos acusados é um adolescente com déficit intelectual que, conforme gravação da própria delegacia, foi coagido pelos policiais a confessar.
Nesse caso específico, no entanto, em que todas as provas apontam Guilherme de Pádua como o culpado (desde o comportamento atípico no dia do assassinato, até a presença do seu carro na cena da crime, a adulteração da placa, as marcas de unhas em seus braços etc.), creio que não há necessidade alguma de dar espaço a ele. Seria até um desserviço propagar as suas teorias da conspiração.
Por mais que um documentarista tente ser apenas “uma mosca na parede”, todo documentário é parcial porque envolve decisões de seus criadores. É preciso editar as informações, escolher o que recebe destaque e o que vai parar no lixo. Na série “The Staircase”, dramatização do documentário homônimo, Antonio Campos coloca em dúvida a “imparcialidade” da editora – que acabou se envolvendo romanticamente com o acusado.
A partir do momento em que um diretor enquadra o seu personagem e começa a gravar, no entanto, ele já está propondo um ponto de vista. A cor da roupa do entrevistado pode ter um significado, a iluminação do cenário pode passar uma mensagem e por aí vai. A imparcialidade é um mito, mas é possível lidar com os depoimentos de forma crítica, para que a produção chegue o mais perto possível de refletir a realidade.
Hoje, no Twitter, uma usuária fez uma sequência de postagens para explicar por que o documentário “Pacto Brutal” tem esse nome e reproduziu uma série de boatos desgastados de que a morte da atriz teria sido um ritual – Glória Perez, mãe da vítima, compartilhou as postagens em seu perfil. As “provas” envolvem fotos do casamento de Guilherme de Pádua com Paula Thomaz, em que os dois usavam as cores vermelho e branco.
Reproduzir estas “informações” sem refletir o que elas significam é perigoso. Muitos acusaram a autora das postagens de incitar “pânico satânico” e ela mesma admitiu que nunca tinha ouvido a expressão antes – ou seja, ela não tem as ferramentas necessárias para discutir esse assunto, ela desconhece o contexto da época em que o crime ocorreu e não sabe abordar os “documentos” apresentados de forma crítica.
O “pânico satânico” ou “pânico moral” é a disseminação de um medo exagerado, ou mesmo injustificado, que visa a criação de um “demônio folclórico” para carregar a culpa por todos os males da sociedade. O exemplo mais óbvio de pânico moral é a Inquisição, que perseguiu e matou milhares de mulheres que desviavam da norma social.
No século 20, a cobertura mediática toma o lugar da igreja para espalhar o pânico moral. Os culpados pela delinquência juvenil são os filmes violentos, a música, os videogames, os jogos de RPG – qualquer coisa que possa ser atribuída ao demônio. Nunca é o abuso sofrido dentro de casa, as condições socioeconômicas ou a facilidade de se adquirir uma arma.
Os “três de Memphis”, retratados no documentário “O Paraíso Perdido”, foram três adolescentes condenados injustamente pelo assassinato de três meninos em 1993. Acusados de satanismo por gostarem de heavy metal e também por terem cometido vandalismo e pequenos roubos, passaram 18 anos na cadeia, até um exame de DNA absolvê-los.
Ontem, uma diretora de cinema ressuscitou, também no Twitter, um caso envolvendo a creche McMartin – julgamento que, por pura histeria, se tornou o mais longo e caro da história americana –, em que sete professores foram acusados de abusar dos alunos durante os anos de 1980 e 1990. As crianças da creche foram sugestionadas a inventar histórias de abuso, criando “falsas memórias”.
Elas alegaram que foram abusadas em túneis subterrâneos (que nunca foram encontrados), que viram bruxas voando, que fizeram passeios de balão e que o ator Chuck Norris era um dos abusadores. Esses rumores de que as crianças eram abusadas em creches tinham o propósito de afugentar as mulheres do ambiente do trabalho e fazer com que elas retornassem ao lar.
Minorias são vítimas frequentes do pânico moral. Na década de 1980, a AIDS foi apelidada pelos meios de comunicação como “a praga gay”, o que fez com que muitos países não se preocupassem com medidas de contenção da doença. Nos Estados Unidos, o presidente Reagan só mencionou a AIDS em discurso no ano de 1987, quando mais de 20 mil americanos já haviam morrido.
Não há dúvidas de que o Guilherme de Pádua é culpado pela morte de Daniella Perez e apontar isto não prejudica minoria alguma, mas argumentar que houve um ritual satânico é criar um medo infundado que pode ter consequências negativas aos mais vulneráveis – como praticantes de religiões africanas, por exemplo. Não existe imparcialidade em documentário, mas apresentar esta teoria sensacionalista sem contestá-la é um excesso de parcialidade.
Se “Pacto Brutal” vai ou não honrar o título, isso só será revelado quando todos os capítulos estiverem disponíveis. Até agora, o que eu vi foi uma exploração mórbida do cadáver de Daniella, mostrado repetidas vezes e de todos os ângulos possíveis, como se esfregar o seu corpo na cara do espectador fosse trazê-la de volta à vida. “É pra chocar,” dizem. Como se o crime em si já não fosse chocante.
Na mesma HBO Max de “Pacto Brutal”, a série documental “Mind Over Murder” é uma lição de delicadeza, auto-crítica e reflexão. Depois que uma idosa é estuprada e morta em uma cidadezinha do interior, seis jovens são condenados pelo crime e depois exonerados. O documentário mostra como uma comunidade dividida por teorias da conspiração pode fazer as pazes com o passado: por meio do próprio true crime (o bom true crime).